segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Fora dos olhos, dentro do coração

   Era dia, era Agosto, sentia-o no calor castigante do Sol, sentia-o nas crianças a correrem e a gritarem nas ruas. E era terça-feira, sentia-o na calma da preparação da feira do dia seguinte, sentia-o na voz da minha mãe a chamar-me para o lanche.

   Hoje não é dia, não é Agosto, nem é terça-feira, e por isso não sinto, não sinto o calor do Sol, não sinto as crianças, não sinto a calma, e hoje sou meramente um homem cego, triste por ser cego, contente por ser homem.

   Lembro-me ainda que no fim do lanche decorei a data que a minha me disse “Hoje é dia 4 de Agosto de 2001”, e eu decorei a data, como se soubesse.

   E hoje, mais uma vez, tento escrever, mais uma vez em vão, porque um cego não escreve, não lê, um cego não vê.

   Como se soubesse que o pai ia morrer, como se soubesse que a cidade ia ficar manchada do sangue que não jorrou do meu pai, como se soubesse que ser cego não impede de sentir decorei a data, 4 de Agosto de 2001.

   E tal como nesse dia, também hoje sinto, sinto o medo a devorar a visão que não tenho, a devorar o sentimento que me mantém vivo. E tal como nesse dia, escolho viver, viver sendo um homem cego, triste por ser cego, contente por ser homem. E tal como nesse dia, também hoje vejo o sorriso imaginado do meu pai, também hoje escrevo linhas e linhas sem caneta, sem visão, apenas com amor, com sentimento, apenas com o coração.

1 comentário:

  1. Lindo, Rui.

    Já escrevi e apaguei inúmeras vezes o que estou para aqui a tentar dizer...

    Que fique ao menos a minha sensação de enlevo. E, ao fundo, um grande som de aplausos em jeito de abraço.

    ResponderEliminar