Era dia, era Agosto, sentia-o no calor castigante do Sol, sentia-o nas crianças a correrem e a gritarem nas ruas. E era terça-feira, sentia-o na calma da preparação da feira do dia seguinte, sentia-o na voz da minha mãe a chamar-me para o lanche.
Hoje não é dia, não é Agosto, nem é terça-feira, e por isso não sinto, não sinto o calor do Sol, não sinto as crianças, não sinto a calma, e hoje sou meramente um homem cego, triste por ser cego, contente por ser homem.
Lembro-me ainda que no fim do lanche decorei a data que a minha me disse “Hoje é dia 4 de Agosto de 2001”, e eu decorei a data, como se soubesse.
E hoje, mais uma vez, tento escrever, mais uma vez em vão, porque um cego não escreve, não lê, um cego não vê.
Como se soubesse que o pai ia morrer, como se soubesse que a cidade ia ficar manchada do sangue que não jorrou do meu pai, como se soubesse que ser cego não impede de sentir decorei a data, 4 de Agosto de 2001.
E tal como nesse dia, também hoje sinto, sinto o medo a devorar a visão que não tenho, a devorar o sentimento que me mantém vivo. E tal como nesse dia, escolho viver, viver sendo um homem cego, triste por ser cego, contente por ser homem. E tal como nesse dia, também hoje vejo o sorriso imaginado do meu pai, também hoje escrevo linhas e linhas sem caneta, sem visão, apenas com amor, com sentimento, apenas com o coração.
Lindo, Rui.
ResponderEliminarJá escrevi e apaguei inúmeras vezes o que estou para aqui a tentar dizer...
Que fique ao menos a minha sensação de enlevo. E, ao fundo, um grande som de aplausos em jeito de abraço.