quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Um herói na biblioteca

O silêncio da biblioteca anima-me, este silêncio de pessoas a sussurrarem alguma coisa ou a folhearem um qualquer livro deixa-me animado, este silêncio perfeito faz-me saborear com gosto o fresco da água na garganta que, a cada gota, me inspira para este texto intercalado com uma deliciosa fatia de bolo feito pela minha mãe.
Castanho, o cabelo do senhor da pastelaria era castanho, como o chocolate deste mármore. Na verdade, acho que era exactamente da cor deste chocolate, exactamente este castanho. O senhor da pastelaria que deixou cair o troco da minha meia de leite com torradas, e eu, com a manteiga a acelerar-me o corpo, apanhei todas as moedas sem as deixar cair, num movimento que deixaria qualquer ninja envergonhado. Olhei a toda a volta para receber aplausos de empresários a tomarem o seu café antes do escritório e de professores a preparem a alma com um palmier ou um travesseiro, mas tudo o que recebi com tamanho ato heróico foi um sorriso ensonado do senhor da pastelaria enquanto dizia “e aqui estão os dez cêntimos que faltam.”.
Ah, como é inglório o heroísmo. As estantes repletas de livros que vejo nesta sala silenciosa concordam comigo guardando em si heróis de outras moedas que, como o ninja que escreve agora estas linhas, perdem a gloriosa fama mais que merecida antes mesmo de a receberem. Este bolo está divinal, digno de um herói que salva moedas indefesas do áspero chão da pastelaria. Doí-me ser herói, não pelos reflexos desmedidos mas pelo anonimato, pela transparência, pela invisibilidade, pelo calafrio e mágoa da invisibilidade.
São quase onze horas da manhã e a senhora da biblioteca sorri-me com um sono igual ao do senhor da pastelaria quando me estendeu a última moeda. Esqueci esse sono do senhor da pastelaria quando senti o fresco do outono fora do estabelecimento, olhei de novo para os empresários e professores, atarefados com cafés e almas, com esperança de receber um olhar fixo a dizer “bom trabalho ali com as moedas”, mas o ego voador deste herói misturou-se com o desânimo da indiferença, o mundo não tinha parado para o nascimento de um herói, e apenas aquele frio de outono testemunhou a minha façanha mais que heróica, mais que épica.
Os heróis vivem no desconhecimento. Nesta biblioteca há, certamente, um empenhado leitor a criar o silêncio das folhas que, sem medos nem fama, voa pelos céus da noite a proteger donzelas indefesas de cinquenta cêntimos. Acabei a fatia de bolo, e com ela, no silêncio desta biblioteca, acabei também este texto.